“O amor não é fácil. Dá trabalho. Ocupa tempo. Dói. Desafia. Leva-nos ao erro e ao engano. Revolve e desarruma. E por mais que as pessoas, depois de entrarem na nossa vida, nunca mais saiam de dentro de nós, muito raramente se ama para sempre. É pela falta de amor (ou pela forma, quase despercebida, como nos inibe, pelo desamparo, com os silêncio mais ressentidos) que todos já morremos de amor, diversas vezes. E quase todos morremos de véspera. E, no entanto, mais nada regenera, mais nada é redentor e mais nada ressuscita do que o amor.
O amor apanho-nos sempre de véspera, de surpresa! Na verdade, nunca estamos preparados para o amor.
O amor é confuso. E, por mais que não tenhamos olhos para mais ninguém que não seja quem amamos – porque estamos, invariavelmente, atentos, e porque somos (sempre) intuitivos e sensíveis -, amar não representa nunca um voto de castidade para com a beleza e para com a vida. Daí que o amor ligue passado e presente, ligue memória, fantasia e outros amores. Por outras palavras, uma história de amor acaba sempre numa encruzilhada de histórias. E, por isso, muitas vezes contra a nossa vontade, liga pessoas. Liga memórias. Liga dores e omissões. E liga o que liga com aquilo que desliga. Na verdade, o amor não serve para se viver no singular. Porque liga nomes e cheiros. Liga lugares. Liga sons. E pormenores. Sobretudo se forem mínimos, insignificantes ou, mesmo, fugazes. Ou quase invisíveis. E liga-nos a quem, de tanto lhe fugirmos, mais presos nos torna a si.
Talvez só o amor nos torne indivisíveis. E, teimosamente, só quando dividimos o amor ele se multiplica. Muito para lá das cavidades do nosso coração.
Na verdade, fomos todos mal-educados para o amor. E iludidos, até. Porque o amor nunca é sempre cor-de-rosa! Mas, seja pelo que for, somos desmazelados – demasiado desmazelados – para com o amor. Às vezes, vivemo-lo com gestos de Amo-te, mas não te desejo. Como se fosse possível ter-se intimidade sem se ser íntimo. Às vezes, confundimo-lo, demais, com a sexualidade. Quase sempre, esperamos que ele nos procure. Ou que nos caia no colo, de forma acidental ou distraída. Mesmo quando mal o olhamos nos olhos. E nos colocamos diante do amor dum jeito pouco humilde, pouco amável, pouco amante e… preguiçoso.
Por mais que muitos amores pareçam, a quem os desconheça, mais ou menos improváveis, todo o amor, para ser amor, tem de ser… provável. Provável de ter em si o seu quê de alguma insegurança que ora o torna compreensível ora o faz contraditável. Provável de, em todos os momentos, ser preciso sentir-lhe o paladar. E provável de nos pôr à prova e de nos dar provas. Por mais que não pareça, todo o amor é uma prova. De vida!
O amor, para ser amor, precisa de gestos. Necessita de surpresas. Mas precisa, sobretudo, de palavras. Daí que esperar que alguém penetre do nevoeiro dos nossos silêncios para que, repetidamente, nos pergunte: “O que é que se passa?”… talvez não seja amor. Mas um mal-entendido. E quando, já em desespero, nos lamuriamos que se perde no tempo a última vez que alguém muito nosso nos convida para um jantar, e essa pessoa nos responde: “Que não seja por isso… Jantamos hoje, pois claro”, aquilo que se passa talvez não seja amor mas um… peso. No “estômago”. E quando ousamos ser surpreendidos por um programa de fim de semana e a melhor surpresa que nos reservam será dizerem-nos: “Fim de semana a dois? Boa ideia!!! Marca tu…”, aquilo que se passa não é amor, mas uma passividade sufocante. E quando esperamos que alguém nos diga que nos ama e temos, como resposta: “Eu também…” Ou, mais simplesmente, “Tu sabes…”, aquilo que se passa não é amor. É um escombro que nasce onde devia haver uma janela.
O amor nunca nos procura. Pode parecer que sim; eu sei. Mas não. Primeiro, vem tudo aquilo que se trabalha para o amor. Só depois, a paixão. E a seguir, claro, a ousadia de o desejar, a ânsia de lutar por ele e a capacidade de o saber esperar.
O amor não passa de moda! Mas, por mais que todos falemos nele, são poucos aqueles que acreditam que o amor é possível. E menos, ainda, os que trabalham (muito!), de forma humilde, até que o consigam encontrar. Por mais que haja quem os ponha em dúvida e lhes diga: Andas à procura de alguém perfeito? Não! – devia ser a resposta. Ando à procura de ter a certeza de quem mereça o meu amor!
Porque é que somos tão preguiçosos para com o amor? Porque, mal ou bem, fomos todos um bocadinho amados. E isso faz com que nos imaginemos com um “valor facial” muito acima daquele que temos. E nos leve a que fiquemos, sobretudo, à espera que as pessoas especiais venham ter connosco e falem por nós. E – antes, ainda, de nos engasgarmos com uma palavra – que adivinhem os gestos certeiros com o que o nosso coração ora palpita e oscila, ora chega ao céu, sem dar por isso. Como se alguém, muito mais do que nós, tivesse de trabalhar para alimentar o nosso amor. Como se fossemos os mais bonitos, os mais singulares ou, mesmo, os mais preciosos. Como se mais ninguém fosse além daquilo que temos para lhe dar. Como se o amor fosse nosso e só nosso. E nunca um eu e tu que liga, de forma irrepetível, o nós a mais ninguém.
Se bem que o Amo-te, mas não te desejo, de algumas pessoas, dê ao amor uma aura etérea e intocável (como se fosse possível esperar que alguém nos adivinhe à margem da curiosidade de olhar para dentro de tudo aquilo que lhe damos a conhecer ou que mostramos), é verdade que, para a maioria das pessoas, a sexualidade parece ser tudo o que resta quando o amor já se esgotou. Talvez por isso a vivam de forma eufórica. Como acabam por fazer todos aqueles que não aceitam que a vida precisa de alguma dor para que seja linda. Talvez por isso se dispam muito mais depressa por fora do que se despem por dentro. E, sendo assim, talvez vivam o dia seguinte com o sentimento de que o ontem, se terá tornado, muito depressa, tarde demais. Talvez porque confundam alegria, que é uma experiência de encontro e comunhão, com euforia. Que é um grito de triunfo sobre uma dor que nos persegue.
O amor não se faz sem muitas pessoas a viver no nosso coração. Mas quanto mais as pessoas do nosso coração são desconhecidos hospedados em nós, mais o amor – que é transparente – ganha em desconfiança e se torna estranho. E não é possível ser-se estranho e feliz ao mesmo tempo.
E, no entanto, sem sexualidade não há amor. Porque só quando dois mundos se cruzam num mesmo olhar o amor fala por nós. E só quando duas vergonhas costuram uma cumplicidade indesmentível o nosso amor ganha, quase sem querer, a nossa cara. E só quando dois gestos se casam e se ligam num único movimento (e dois ritmos desaguam um no outro) é que corpo, cabeça e alma falam do amor por nós.
Só o amor nos casa. E só a sua ausência nos divide, por dentro. E divorcia. E é tal a ânsia de ir, depressa, ao seu encontro que, às vezes, imaginamos que basta o nosso amor para sermos amados. Por mais que o melhor do nosso amor não chegue para arrebatar quem, não fazendo de nós parte de si, não é, também por isso, aquilo que nos falta para ser o nosso amor.
Já todos fizemos, generosamente, por amar sozinhos. Por mais que, às vezes, não fique claro se gostamos de alguém ou, simplesmente, se gostaremos da forma como essa pessoas gosta de nós. Há muitos Eu queria ser feliz em todos os amores. Por mais que um Eu queria ser feliz seja uma espécie de Quero amar; para ontem.
Mas, afinal, depois de viver com o seu amor, sente mais orgulho ou mais vergonha? Transformou-se numa pessoa mais bonita ou mais feia? O tempo foge-lhe ou passa devagar? Está mais trôpego(a) com as palavras ou mais inteligente? Está mais apaixonado(a) ou sente-se insosso(a)? E a sua paixão tem a sua cara?
Se está mais bonito(a), mais orgulhoso(a), mais inteligente e mais intenso(a) em relação a tudo aquilo que vive, deixe-se ir. Talvez esteja a construir uma paixão. Mas se tem contas separadas, se os códigos do seu telefone são mais ou menos secretos, se não se confia todo(a) quando se trata de se despir por dentro, isso de ser totalista com as terminações tem graça. Se se perdeu da paixão, pode sentir-se amado(a)? Sem paixão as pessoas coabitam mas não convivem. Casam. Mas não namoram.
Não é possível amar alguém que só pareça lindo. É preciso que nos despenteie o coração, claro. Mas que nos torne inteligentes. E que nos leve a dizer, com uma surpresa acidental: “Caí! Caí em mim.” E que, dando um ar da sua graça, nos devolva (mesmo contrafeitos) ao melhor do nosso coração.
Mas se a pessoa a quem nos dedicamos vive cada um dos nossos Amo-te! como se as palavras fossem uma escalada que, de tão íngreme, a faz ficar por um sussurrado Gosto de ti, então o amor talvez viva ao engano. Quando se tem dificuldade em dizer amo-te isso não quer só dizer que se é trapalhão com aquilo que se diz. Mas, antes, que há quem se desculpe com isso quando não é capaz de assumir, com coragem, que não nos ama.
Não se ama se nunca se pedir desculpa. E não se ama se nos desculparmos demais. Quem ama não se atrapalha com as palavras. Nem faz de tudo aquilo que não diz um amor de malas sempre à porta.
Todos os amores são para sempre. Mas todos morrem. Por mais preciosos que pareçam. De descuido.
As pessoas casam-se precipitadamente. E divorciam-se ainda mais depressa. E é fácil que seja assim. Porque nem sempre as pessoas se casam por dentro quando se casam por fora. Porque casam, vezes demais, com o seu melhor amigo em vez de casarem com o grande amor da sua vida. E porque entendem que o maior desafio que o amor lhes coloca seja o de irem, sem erros nem perdas, ao seu encontro. E, pior, como se mais importante que encontrar um grande amor não fosse nunca o perder.
Sempre que trabalhamos mais para a nossa profissão do que para o namoro estamos a pôr o amor em primeiro lugar enquanto trabalhamos, todos os dias, para nos divorciarmos. Por mais que, muitas vezes, a carreira não estrague um casamento. Antes o proteja de um divórcio…
Um casamento nunca é um contracto. É um estado de espírito. Mas, depois, há as exigências familiares, o espaço imenso que as crianças ocupam. Os anseios e as contrapartidas de uma carreira. As aflições das famílias e as obrigações sociais. E, quando se dá por isso, os conflitos saudáveis, por quase nada, fazem um novelo de silêncio e quase deixem de existir. E se é verdade que, sempre que namoramos, nos casamos, por dentro, um bocadinho, mal desistimos de namorar divorciamo-nos, hoje, dez centímetros e, amanhã ou depois, mais outros vinte. E, quando se repara, somos familiares que ficam estranhos e pessoas íntimas que se desconhecem, todos os dias, um pouco mais. E enquanto isso se dá, as pessoas encontram-se sexualmente. Mas não se amam. A sexualidade é, vezes demais, o rendimento mínimo garantido duma relação que se constipou para o amor.
Talvez seja por isso que muitos casais que não falam, não se zangam, não constroem sonhos e não brincam. E que nunca se dispam por dentro. E é por isso que não é nítido que, com o tempo, a sexualidade se torne, para eles, necessária ou insubstituível. Por mais que, para muitos, haja uma febre de sábado à noite. Uma espécie de epidemia atípica de: hoje não, porque me dói a cabeça… Como se fosse possível que duas pessoas que se deviam amar se abusassem. Simplesmente.
As pessoas tornam-se mais feias quando ficam mais velhas? Ou, doutra forma: porque é que as pessoas parecem perder a beleza, quando crescem? Porque acumulam dores por cicatrizar. Porque vão de desilusão em desilusão e sentem que deixaram de esperar o que quer que seja da pessoa com quem estão. E porque parece não haver quem as consiga arrebatar, admirar, entusiasmar ou surpreender. Quando é que dói o amor? Quando a sua falta nos ajuda a descobrir que muito depressa o amor se tornou tarde demais. Quando é que ele nos adoece? Quando amamos a olhar para trás. E quando é que, por fim, nos mata? Quando a pessoas com quem estamos nos faz ter mais saudades que esperança. E é por tudo isso que só o amor faz com que nunca se morra só uma vez.
Faz bem (ou faz mal) lembrarmo-nos, com frequência, da pessoa com quem, antes de estarmos numa nova relação, estivemos anteriormente? Faz bem. Desde que a memória não exagere, claro…
E quando temos uma nova relação, é normal sermos atropelados por sonhos onde entram pessoas importantes para o nosso coração por quem, antes, nos apaixonámos? Não. É saudável, claro. Nunca se ama sem contraditório.
E é normal trocarmos, de vez em quando, os nomes dessas pessoas e chamarmos aquela que, entretanto, entrou na nossa vida, o nome… da outra? É normal. Mas não convém…
E é, finalmente, normal apresentarmos as facturas de um amor que correu mal a uma pessoa que, entretanto, chegou à nossa vida? Ou vingarmo-nos, nessa pessoa, de tudo aquilo que uma outra nos fez? Não, não é normal. É fatal…
Porque é que temos tantas vezes a sensação de atrairmos as pessoas que mais nos magoam? Porque, de entre a pequena multidão das pessoas com quem se costura o nosso amor, são mais, às vezes, aquelas de quem fugimos do que todas as outras que, ligando, ligando e ligando, nos educam para o amor. Fugir de alguém que vive em nós faz com que fiquemos presos a esse alguém para quase sempre.
O desejo não é uma chama que se incendeie sem querermos. Às vezes, todos sabemos, até parece ser assim. Mas o desejo é muito mais uma consequência do que o ponto de partida. Mas, então, porque é que há amores… à primeira vista? Porque não estando nunca distraídos, há pessoas que ligam em nós, num flash, desejo, paixão e amor como mais ninguém, até aí, parecia levar-nos a ligar.
As pessoas prevenidas têm mais hipóteses de ser mais felizes ou, pelo contrário, ficam mais facilmente sozinhas? O calculismo é amigo do amor? É possível preparar o dia seguinte de véspera? É possível ser desconfiado e feliz, ao mesmo tempo? Como é que se pode confiar, de olhos fechados, e desconfiar, ao mesmo tempo?
De quantas pessoas se costura o nosso amor? De uma pequena multidão. E é por causa delas todas que descobrimos o amor. E por causa das outras, também, ao pé das quais cada dia seguinte se tornou tarde demais. E daquelas que fazem um esforço para ser melhores, por mais que nós merecêssemos que elas fizessem mais do que um… esforço (por mais que seria bom que fossem melhores… sem esforço). E das outras com quem quase tudo correu mal e, só por isso, vivem, para sempre, tatuadas no nosso coração. E das outras, claro, junto de quem tantas coincidências não podiam ser, assim, tão acidentais como pareciam. E costura-se, ainda, finalmente, com quem mereceu a veleidade de ser A pessoa, de entre todas as demais, da nossa vida. Será que escolhemos o amor ou o amor nos escolhe a nós? Não sei. Mas, seja o que for, nunca se ama sem se comparar. Sem se hesitar. E sem contraditar.